segunda-feira, 18 de julho de 2016

Fiança, pobreza e estado de coisas inconstitucional: breve reflexão.

Hoje quero tecer um rápido comentário sobre um precedente do Min. Celso de Mello do último informativo do STF de número 831.

O caso é simples: Houve a prisão em flagrante de determinada pessoa por furto simples e direção ilegal de veículo. Assim, de forma até comum, o juiz fixou fiança, que não foi paga por falta de dinheiro.

Então, foi mantida a prisão, até o momento em que fosse recolhida a fiança.

Ocorre que o caso chegou no STF e o Min. Celso de Mello assim decidiu (vou colocar só a ementa que já dá de entender o que quero discutir):

Prisão em flagrante. Furto simples (CP, art. 155, “caput”) e direção ilegal de veículo automotor (CTB, art. 309). Paciente que, por ser pobre, não tem condições de prestar fiança criminal (CPP, art. 325, § 1º, I). Manutenção, mesmo assim, de sua prisão cautelar. Ausência dos requisitos de cautelaridade. Existência, contra o paciente, de procedimentos penais em curso: Irrelevância. Presunção constitucional de inocência. Direito fundamental que assiste a qualquer pessoa. Caráter excepcional da prisão cautelar. Incongruência de manter-se cautelarmente preso alguém que, se condenado, sofrerá a execução da pena em regime aberto (CP, art. 33, § 2º, “c”), caso o magistrado sentenciante não opte por substituir a pena de prisão por penas meramente restritivas de direitos (CP, art. 44, I). A prevalência da liberdade como valor fundamental que se reveste de condição prioritária (“preferred position”) no plano das relações entre o indivíduo e o Estado. Precedentes. A clamorosa situação do sistema penitenciário brasileiro como expressão visível e perversa de um estado de coisas inconstitucional (ADPF 347-MC/DF). Concessão de liberdade provisória ao paciente. Medida cautelar deferida. HC 134508-MC/SP.

Assim, pela leitura acima, identifica-se alguns pontos para questionamento:
1-              Cabe ao juiz antecipar a provável pena para verificar se a prisão é devida?
Devemos lembrar que esse juízo antecipatório é terminantemente vedado pelo STF e STJ para a prescrição virtual (que um dia vai cair, tomara!).

2-            A liberdade é realmente uma posição preferencial em todos os casos do nosso ordenamento?

3-            O estado de coisas inconstitucional pode ser analisado para a flexibilização da prisão preventiva?

4-            A existência de procedimentos penais em curso realmente não pode ser levado em conta para a prisão?
Neste item 4, devemos lembrar de precedente do STJ de que o adulto que fora menor infrator contumaz pode ter contra si esse fato levado em conta para a sua prisão preventiva, mas não para caracterização de maus antecedentes.

5-            Por fim, a simples ausência de dinheiro, ou pobreza mesmo, impede que seja decretada a prisão preventiva de determinada pessoa?

Bom, algumas questões acima podem ser realmente fáceis de responder, a depender do posicionamento ideológico que possuímos. Ocorre que essas questões são práticas e diretamente relacionadas aos nossos estudos e profissões.

Por exemplo, se eu entender que o estado de coisas inconstitucional é presente na Cadeia Pública de Colniza, tenho que deferir liberdade provisória neste exato momento a todos os presos provisórios?
Eu acredito que se o fizer, no outro dia recebo uma reclamação no CNJ.

Assim, eventual leitura de precedentes deve ser feita com ponderação. No caso, veja-se que a situação chegou ao extremo de só no Supremo ser revisitada a situação do preso.

Para evitar situações assim, tornei como rotina a seguinte prática: Quando das minhas visitas na cadeia, pergunto quais são os presos provisórios com fiança e desde qual data a fiança foi imposta. Se por mais de uma semana, para mim ficou clara a situação de que a pessoa não irá pagar fiança e, por isso, imponho outra medida cautelar não pecuniária adequada ao caso.

Claro que há muito mais requisitos e aspectos que são analisados quando da imposição da fiança, mas devemos lembrar que a sua simples fixação e depois esquecimento da pessoa presa gera um dos fatos que compõem o estado de coisas inconstitucional.

Não responderei todas as perguntas acima, eis que são retóricas. Todavia, as coloquei para exemplificar o que cotidianamente o Defensor, o Promotor ou Procurador e o Juiz se deparam perante uma prisão em flagrante.

Às vezes (muitas, muitas vezes...), você verifica todos os requisitos da prisão preventiva, eis que há fundamento teórico para quase tudo, mas percebe que ela não é a mais adequada ao caso. Por outras, você percebe que ela é a mais adequada pela situação ser em uma cidade pequena e não o seria se fosse em uma cidade grande.

Quando entrei na magistratura, escutei coisas como: se você ficar liberando muito, sua cidade (como se a comarca em que atuássemos fosse nossa) ficará um inferno. Se prender muito, terá muitas representações na Corregedoria ou CNJ. Se determinar tornozeleira eletrônica, irá acabar rápido e irá banalizar o instituto. Se soltar estuprador, a sociedade irá matá-lo. Se determinar a prisão de “gente importante”, irá receber ameaças.

Percebe-se que há muitos silogismos que são importados ao mundo jurídico como fatos pré-programados, acorrentando quem quer que seja ao analisar a prisão e suas modalidades.

Assim, retornando ao precedente do STF, entendo-o como válido, mas impossível que aplicação a todos os casos.

Vejo, atualmente, que o antigo “boca da lei -bouche de la loi” está se tornando “boca do precedente que ainda nem se tornou jurisprudência”, de forma que se aplicarmos qualquer decisão monocrática sem força vinculante a todos os casos minimamente análogos, podemos criar um estado de coisas caótico.

Portanto, aquela frase que aprendi já no primeiro ano de faculdade: “depende do caso” ainda é a melhor saída. Às vezes, podemos ter o caso de o preso ser pobre, não ter quitado a fiança, mas começa a coagir testemunhas. Assim, ao invés de revogar a fiança pela simples pobreza, será determinada a sua prisão preventiva, não?

Deixo aqui este post ainda cheio de dúvidas e questionamentos.

Aviso aos navegantes: Hoje entro de férias! YEAHHH!!! Mas, mesmo de férias, tentarei atualizar o blog e planejar algo interessante para o meu retorno.


Abraço a todos! 

4 comentários:

  1. Muito interessante e serve como "um aviso aos navegantes" que pretendem navegar nos mares bravios da Magistratura. É uma enorme responsabilidade a repousar nos ombros.

    Aliás, fica a sugestão de postar mais textos dessa natureza, quais sejam, sobre a atividade do magistrado.

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    1. Raquel, pode deixar que farei sim outros sobre a atividade do magistrado. Obrigado. :D

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  2. Prezado Vinícius, já disse aqui (e repito) que a sua iniciativa é reveladora de um caráter valioso e de uma acuidade missionária de esmerado e superlativo significado para a comunidade jurídica e, porque não, para os que almejam a Magistratura Nacional.

    ***

    A Constituição do Brasil, norma de textura aberta no que respeita aos direitos fundamentais (art. 5º, §§ 2º e 3º), traz (a meu ver) um “regime jurídico dos carentes”. Veja-se que essa “grande” parcela dos brasileiros tem direito a assistência jurídica integral (atualmente fornecida pela Defensoria Pública), ao registro civil de nascimento e a certidão de óbito, etc., ambos de forma “gratuita”.

    Não me parece razoável (princípio que segundo o STF podemos extrair da cláusula do devido processo legal – art. 5º, LIV) que uma pessoa humana carente economicamente tenha direito a ser “defendido” por um órgão do estado (oficioso), mas, ao mesmo tempo, ter de amargar as agruras da prisão pela mesma razão fática: ser carente.

    Desafia-se com isso a lógica do razoável de Recasens Siches.

    Há saída positiva: o CPP, além da CRFB/88, que tem incidência direta/imediata/vertical (porque mecanismo ótimo para corrigir rumos e as desigualdades sociais, penso).

    No art. art. 326 do CPP está escrito:

    “Para determinar o valor da fiança, a autoridade terá em consideração a natureza da infração, as ‘condições pessoais de fortuna’ e vida pregressa do acusado, as circunstâncias indicativas de sua periculosidade, bem como a importância provável das custas do processo, até final julgamento.”

    Caso o diligente Magistrado verifique que o preso não reúne condições econômicas favoráveis (não lhe será lícito impor uma fiança irrisória, acarretando a inocuidade), deverá aplicar o art. 350, que diz:

    “Nos casos em que couber fiança, o juiz, verificando a situação econômica do preso, poderá conceder-lhe liberdade provisória, sujeitando-o às obrigações constantes dos arts. 327 e 328 deste Código e a outras medidas cautelares, se for o caso.”

    Outra coisa:

    - a fiança somente é arbitrada quando não estão presente os requisitos da prisão preventiva (CPP, art. 324).

    - a fiança tem um pressuposto básico, básico mesmo, critério essencialíssimo: a lei denomina de condições pessoais de fortuna, ou seja, capacidade econômica do preso (agente).

    Boas reflexões nos itens de 1 a 5; aguardamos respostas!

    Abraços,

    Fernando

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    1. Excelentes suas ponderações, Fernando. Colocarei as respostas no próprio post então.

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